quarta-feira, outubro 26, 2005

Crônicas















O anel

odeteronchibaltazar

Aos meus sete anos, comecei a ir para a Catequese para aprender a doutrina da religião católica, como faziam todas as crianças da minha idade, no meu bairro.
A doutrina era aos sábados, à tarde, na igreja e era dada por catequistas , que eram mocinhas da comunidade.
Sentávamos nos bancos da igreja, e eu ficava distraída, olhando os afrescos bem pintados da igreja. Eram muitos e todos contando alguma história da Bíblia: o dilúvio e Noé, com os animais todos enfileirados; a sarça ardente com o "fulano" espantado na frente (agora esqueci o nome, e na época eu nem sabia também...); a criação do homem num jardim maravilhoso...hã?
- Hã? hum...o quê?
Era eu, toda atrapalhada, tentando voltar à realidade e tentando responder à catequista:
- O pai é Deus? -- perguntava ela a todos (ainda bem).
E todos gritavam bem alto a resposta, fazendo ecoar na igreja, que me parecia enorme pra minha meninice:
- Sim, o Pai é Deeeeeeus...
- O Filho é Deus? a catequista prosseguia.
E nós, tentando parecer muito entusiasmados:
- Siiiiimmmm! O Filho é Deeeeeeus!
E lá vinha mais uma pergunta misteriosa:
- O Espírito Santo é Deus? a esta altura, eu já estava confusa, mas respondia prontamente, tudo decorado, na ponta da língua:
- Siiiimmm! O Espírito Santo é Deeeeus!
Até hoje, lembro destas perguntas, e as faço ainda...
Mas, deixa estar que nesse dia , eu havia passado no bar, em frente à igreja, onde comprávamos as guloseimas todas e tinha comprado as balas antes da Doutrina, ao invés de comprá-las na volta. Sempre tínhamos uns trocados para as balas e picolés, mas sempre deveriam ser comprados na volta.
Eu havia comprado umas balas que vinham em caixinhas fechadas com brindezinhos de plásticos e que exerciam uma tremenda fascinação em mim. Naquele dia veio um anel de metal dourado com pedrinha de plástico colorido.
Chupei a bala (deliciosa), coloquei o anelzinho no dedo e durante toda a doutrina fiquei a botar e tirar o anel do dedo. Chegou até a cair a tal da pedrinha colorida.
Então, coloquei o anel na boca e comecei a mastigar o metal. Mastiga cá, amassa lá, morde acolá, e ops!
glup...hgun... ENGOLI!
- Engoli o anel! -- falei pra catequista, atenta aos catequizandos.
E desandei num choro convulso, apavorada, fazendo a catequista ficar endoidecida atrás de água (para me fazer engolir melhor o anel, eu pensei na hora).
Muitas águas e lágrimas depois, voltamos à doutrina , mas todos olhavam para mim como se eu fosse uma misteriosa engolidora de anéis...
Pior foi chegar em casa, com minha irmã mais nova fofoqueira, alardeando pra quem quisesse ouvir:
- Mãe, a Dete engoliu um anel!
E a minha mãe depois de ouvir toda a história, fala muito faceira e calma:
- Ainda bem que a Dete mastigou bem o anel, antes de engolir.

odeteronchibaltazar


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CENA RURAL

odeteronchibaltazar


Eu não entendo nada de bois, embora tenha sido criada no meio deles. Meus avós tinham para o gasto da casa, quero dizer, tinham vacas com leite e gado para corte (ui, que medo!).
Vivia brincando nos pastos com bosta, sabe aquelas? Aliás, meus pais se conheceram em uma guerra de bostas. E é uma história muito romântica esta que vou contar-lhes.
Minha mãe tinha ido visitar uns parentes, no Caravaggio (município de Nova Veneza, Santa Catarina), bairro vizinho do Rio Maina, onde ela morava.
Lá pelas tantas da tarde, minha mãe e as primas foram chupar laranjas, mais precisamente vergamotas. Naquela região, tem-se o costume de separar terras com árvores frutíferas; na maioria das vezes, com pés de vergamotas, que têm espinhos para evitar a saída do gado e, ainda assim, os frutos são aproveitados.
Pois bem, estavam chupando as tais vergamotas e ouviram uma conversa do outro lado das vergamoteiras, que eram as terras do João Ronchi (meu avô paterno). Ficaram curiosas e, em silêncio, tentaram escutar algo, mas o que ouviram foi um splashhhh! do lado delas. Era uma enorme bosta de vaca, daquelas moles e bem frescas, que caiu bem perto da minha mãe. Ainda meio surpresas com a petulância daqueles "bugres", não perderam tempo: minha mãe foi à cata de munição e as primas ajudaram-na a iniciar a batalha.
Era um tal de voar bosta para todos os lado, e minha mãe ficava doidinha, evitando se sujar. Um tanto impossível, já que a melhor munição era exatamente aquela mais mole...
Cessada a guerra, com sujos e embostados de ambos os lados, risadas correndo soltas, as duas facções se encontraram e buon giorno daqui, buon giorno de lá. Meus futuros pais ficaram se olhando nos olhos claros e, lá mesmo, no romântico cenário rural, marcaram de se encontrar na domingueira. Ali, naquela guerra de bosta, eu já era um projeto divino...

odeteronchibaltazar

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Tempos da nona

odeteronchibaltazar


Quando criança, lembro tão bem, íamos na casa da nona, depois da janta. Ficávamos todos na grande cozinha a conversar.
Minha mãe falava com meu avô em italiano, e eu me punha, atenta, a escutar, mas nada entendia. Fingia que entendia , mas o bordado não saía do pano. Me contentava com o som gostoso das vozes, como se fossem segredos contados ao pé do ouvido. Ficava meio grogue, me deixando levar pelo som letárgico das falas em dialeto, e aquela cantilena me dava um sono...e de mais nada eu tinha medo.
Queria que o tempo parasse para ficar ali, assim, sentada ao pé dos adultos, no chão vermelho e bem encerado da cozinha. Queria ficar ali, assim, esperando o café com leite e o pão da nona que sempre enchia a mesa farta, a polenta fria, que sempre sobrava do almoço, o queijo "guitchi-guitchi", (um queijinho bem magro que fazia esse som ao apertá-lo, feito pela nona Corina, que na verdade era minha bisnona), o salame, a mortadela...Tudo feito em casa. Dá água na boca só de lembrar!
Quando já os olhos queriam colar, voltávamos para casa, a pé, pelas ruas escuras. Naquela época não tinha iluminação nas ruas do Rio Maina. Minha irmã mais nova ia no colo. Nesse tempo o meu irmão caçula, o Bertino, não era nascido.
Então, nessa hora, eu tinha medo. Muito medo. Agarrava a calça do meu pai e, de olhos bem fechados, pé ante pé, só os abria em casa, tendo até a alma suada.
Lembro da sensação de colocar o pé no escuro sem saber onde o estaria colocando. Lembro do barulho dos nossos passos no silêncio da noite. Lembro do carinho quente da cama, depois desta caminhada. Lembro...
Feliz lembrança, de um tempo gostoso. Tempo tão fugidio! Lembranças tão boas, de deixar a alma lavada.


odeteronchibaltazar

2 comentários:

Anônimo disse...

Menina, me deu até fome, só de pensar em tudo o que tinha lá na casa da tua nona.
Mama mia,hein?
E que coisa esse medo do retorno para casa,não?
Mas tudo isso é lindo demais.
Faz parte da nossa vida e não dá para esquecer(nem queremos).
bjos,amei.

Anônimo disse...

Ah,mas pera aí.Eu não vi que o texto sobre o primeiro encontro dos teus pais(na guerra de bostas de vaca)e o do teu estômago de avestruz(quando engoliste o anel na doutrina)estavam para o mesmo comentário.Não posso deixar passar em branco, de jeito nenhum.
Sensacional.Que guriazinha mais mimosa que tu devias ser, não?
Distraída, na doutrina, mascando um anel...kkkkkkkkkk. Essa tá demais,Dete.
Parabéns por todos estes textos.Estão ótimos.
bjos,Tania

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